• Carlos Henrique Baiano: Músico e Compositor

    Data: 18/08/2011 | Categoria: Entrevistas | Tags:

    Convidado para uma exposição dos seus trabalhos na Galeria de Arte do site, Carlos Henrique Machado Freitas (Baiano) nos recebeu com a generosidade própria de quem forja a maturidade com qualidade; humanamente, tenazmente, sem estrelismo.

    Nascido na cidade de Volta Redonda, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, e reconhecido por grandes talentos da música e do jornalismo, tanto aqui, quanto no exterior, é considerado um dos mais brilhantes artistas contemporâneos; um dos melhores compositores de choro da atualidade.

    Em Vale dos Tambores, premiado álbum duplo, vencedor do Prêmio Rival Petrobrás de Música em 2005, privilegia nossa região, Vale do Paraíba, por percebê-la como uma das mais musicais do Brasil. 

    Nesta entrevista, você terá a oportunidade de saber um pouco mais sobre ele. Leia! 

       Obrigada por estar aqui, Carlos Henrique!  

    Um especial agradecimento  também à Celeste, sempre muito    gentil e eficaz como mediadora dos nossos contatos.

    Você nasceu e cresceu dentro de um ambiente musical. Fale-nos um pouco sobre essa experiência. 

    Os diálogos entre gerações, dentro da família, mapeiam uma tendência terna. Nesses encontros, o fator afetivo tem um tratamento que vai possibilitar, junto com outros fatores da vida, que a realização de nossos objetivos puxe pelas ações e, consequentemente, nossas reflexões acabam por expressar nosso próprio ambiente. Mas, é fundamental que se diga que este não é um caminho premiado.

    A viabilização da arte está, sobretudo, na possibilidade de diálogos que, ao longo da vida, nossas necessidades reivindicam, para destinarmos o nosso poder de criação e destacarmos os parâmetros que elaboramos em nosso inconsciente. 

     Com que idade, e em que circunstâncias, houve sua iniciação no exercício da música? 

    Comumente utilizamos a nossa história como um processo simbólico; esse arsenal passa a ser muito mais do nosso imaginário do que algo que, de fato, estabeleça uma determinada data. Surge então, como síntese, entre a experiência e a expectativa, um ponto vital que acreditamos ser a receita do primeiro pão. Mesmo assim, carecemos de uma identidade, como protagonistas, onde nossas práticas traduzam os sintomas de nossas assinaturas; por isso é difícil precisar datas dentro desse contexto. A intuição é algo diverso no espaço geográfico da criação. O esforço é um instrumento que define um determinado momento-chave de nossas motivações.

    O meu início propriamente dito na música aconteceu lá pelos meus 16 anos, quando ingressei em um grupo musical e pude, através de um compromisso, dar a minha contribuição, mesmo limitada.  

     Quais as principais influências que recebeu?  

     Esta é a maior das rasteiras que o cosmopolitismo pode nos dar. Adotar uma característica, dentro de uma constelação de fatos, é uma teoria quase ficcional. A diversidade é algo muito mais presente, e exerce muito mais pressão em nossos conteúdos e expressões do que imaginamos, mesmo considerando que criamos uma couraça de proteção para a busca de uma identidade diferenciada.

    O que devemos sempre lembrar, é que o poder e os meios de comunicação não nos deixam alterar tanto o dilema entre a arte dentro do fator humano, e as maneiras distintas daqueles que atribuem à arte vida própria. Não tenho essa formação celebralista. Tudo o que faço depende de um conjunto de emoções. Por isso, não acredito em locais privilegiados, mesmo para aqueles que desejam estudar e tentar entender a nascente de seus conceitos e suas influências. Isto sempre nos joga numa traiçoeira arapuca.

    Prefiro sempre a vigência do meu convênio com a sociedade, para que ela me dê essa janela que promove uma articulação mais garantida do meu espaço, de acordo com as minhas realidades. No geral, as influências são alimentadas por uma determinada linha adicionada, sem sombra de dúvida, por um macro-sistema que habita o nosso cosmos. Demorei um bom tempo para entender isso, e parar de me concentrar somente no meu instrumento ou na própria arte como fator cultural. 

     De onde vem tanta, e tão rica, inspiração? 

     Não sei se sou tão inspirado assim, mas gosto muito dos números menores, dos detalhes que nos revelam segredos preciosos que estão conosco, mas que só são acionados quando estimulados. Acho que, na defesa, somos obrigados, sob os ataques das imposições, a ter uma noção mais ampla de espaço. E como a cultura no Brasil não vem da tradição dos grêmios, das instituições conservadoras, nós terminamos por criar, com amadorismo e improviso, o nosso espaço. E como ele não é permanente, porque não é institucional, traçamos uma perspectiva que cria, entre nós mesmos, conflitos e disputas entre o que pensamos ontem e o que pensamos hoje. É da lei da sobrevivência. Funciona como um desafio diário.

    Como é ter a música como ofício? Quais os principais obstáculos encontrados? Quais as principais conquistas?

     A arte de maneira geral, como ofício, não se consolidou em lugar nenhum no mundo; ela depende sempre de iniciativas de outros setores para que se concretize. Se Bach fez a opção de compor para os reis, e Beethoven para o povo, com certeza nenhum dos dois procurava envolvimento com a cidadania. Ambos buscavam contrastes de força, mas não deixava de ser uma forma de dependência institucional.

    A arte não é necessariamente um ofício, esta é a visão mais complicada que a nossa profissão delata, sobre a semelhança da arte com a fisionomia do setor produtivo. A arte atravessa as questões em vários períodos e povos; não como inútil ou pueril, mas como a própria expressão do olhar de uma sociedade. É a única capaz de dar fisionomia a determinado ideal de uma tribo, de uma cidade, de um estado, e de um país. E essa harmonia íntima não morre.

    O tempo vai passando e, mais do que a experiência incubada, nos tornamos patriarcas e até conselheiros, contudo, não há um glorioso universo que nos console a um grau de acentuação tal que não acabe zombando do nosso próprio ovo. Infelizmente o nosso figurino de sucesso é decalcado da ordem industrial, pior, dos chiques diretores estéticos que, dentro de seus anacronismos, tentam nos jogar na soberba, que nos deixa cômicos.

    A arte não é um substrato mental. A paspalhice que agora compramos, muitas vezes em acentuado grau, sofrerá um baita repuxo, justamente porque a forma de construir os méritos não terá um único canal. Felizmente o batismo se dará para todos, no you tube, nas redes sociais, enfim, em tudo com que as tecnologias nos brindam; assim, logicamente, os valores absolutos serão determinados agora por todos, e não restritos, por exemplo, à figura de um marchand ou de um mega produtor. 

    Que fatores você considera fundamentais para a elaboração e finalização de uma boa obra?

    Acho que estar integrado em nossa própria dimensão e personalidade, em prol de uma boa guerra, pode ser um caminho; mas também acho que qualquer um pode se sentir contrariado com a minha forma de encontrar determinada cintura para criar um determinado ideal artístico.

    A cultura berra todos os dias formas e moldes. Uns realizam bobagens, vestem o coturno da moda e enfiam o pé no cimento da modernidade da vez, e ali se transformam num composto de alheios, produzindo uma grotesca inutilidade absoluta. 

    É bom que se diga em alto e bom som que as pinacotecas não são incubadoras de gênios, por isso a feição dominante de determinada característica, dentro da nossa própria trajetória, não pode sentar na cadeira dos louvores passados, pois assim assinamos caricaturas de nós mesmos. Uma espécie de tara narcisista que nos joga num fosso muitas vezes sem volta.

    Por isso, dou linha às manivelas dentro da minha engenhoca, procurando me envolver naquelas primaveras que riscam o nosso cotidiano. Não há uma marca que raiou com a maravilha do nosso nascimento. Acho que, a todo momento, podemos seguir uma picada recém-aberta para avançar sem sermos segregados por nossos próprios demônios. Por isso, na criação, os sertões, a meu ver, continuam desconhecidos.   

    A crítica especializada não economiza elogios ao seu trabalho. Como se deu o processo de conquista desse reconhecimento?  

    Na verdade, não temos uma crítica especializada e, por isso, talvez a falsificação da entidade brasileira tenha caminhado tanto de forma levianamente sistematizada.

    Acho que o meu trabalho ganhou importância porque coincide com a nossa necessidade de redescoberta. Naturalmente demoramos um tempo para entender isso. O ciúme que tínhamos do nosso próprio produto acabou por nos colocar num exotismo individualista, a ponto de admitirmos apenas o sucesso do artista; mas, ao contrário, a obra que vai muito além de nós, é que ganhou o mundo. A nossa importância está limitada à condição de defensores desse patrimônio e, talvez, a grandeza dele tenha impulsionado as pessoas a escutarem a minha música com a mesma sensação. Assimilar tudo isso não é tarefa fácil, pois somos sempre obrigados a pensar que cada frase, e cada passo que damos, é um prodígio vasto da nossa própria atuação, quando na realidade nós somente participamos das coisas, evidentemente que com a patente de criador, o que se torna ainda mais perigoso. 

    Como é, também, ver o seu trabalho reconhecido fora do país, mais especificamente no Japão?  

    Acho que, pelo afastamento, nós praticamente aceitamos mais a frase estrangeira que nos elogia, do que a brasileira que nos confunde com outras formas de expressão. É muito difícil empregar um sentido quando ultrapassamos as fronteiras nacionais e produzimos uma concepção em outros países; logicamente eles enxergam tudo isso com outros sentidos. Se olharmos este meu trabalho como gênero, de maneira meramente convencional, podemos dizer que alcançamos a escala máxima desencadeada por uma obra. Mas acho bem melhor aceitarmos a nossa limitação, pois a realidade tem critérios bastante avessos à visão superposta, que aparece mais como uma invenção individual do que uma forma geral assumida pelo universo de determinado artista.

    Temos sempre que pensar nos processos, no que concebe ganhar ou perder no nosso dia-a-dia e, neste caso, todo o sucesso estrangeiro acaba caindo mais na abstração do que na nossa incontestável realidade. O sucesso fora, praticamente não cria alterações consistentes no sentido de mudar certos aspectos da nossa retórica cotidiana. 

     “Choro Brasileiro”… É possível definir? 

    Esta tem sido a temática mais empregada em minhas falas, pois o choro brasileiro, se virmos com profundidade, que nem é inédita, não se limita às melodias populares brasileiras que são tocadas em alguns dias da semana como forma de dialogar com outras tonalidades mais ou menos modernizantes. Gosto de saber de todo o nosso processo herdado, o que, a meu ver, está na infinita maioria dos nossos documentos artísticos. Isso transcende o som e sua simultaneidade. Acho que cada povo tem sua característica, e dentro desses elementos vitais é concebida uma peça, um parecer artístico, que justifica um sentimento possível de se harmonizar com a aura desse povo. O choro, pra mim, é isso, ponto central de nossa alma. 

    A princípio, quando eu dizia isso, muita gente torcia o nariz e me olhava com estranheza, mas como tento sempre demonstrar as fontes dos meus pensamentos, hoje vejo que esse pensamento, entusiasma; principalmente quem não se mantém preso aos processos de uma oratória exclusiva do choro como uma manifestação musical. Conforme eu disse, o conceito choro brasileiro é o mesmo que define todos os traços, falas e sons dos nossos pontos de vista; que dão sentido à nossa arte no geral, logicamente de forma inconsciente.   

    Quem gosta e quem não gosta de choro? 

    Não sei quem não gosta. Creio que podemos dizer que tem muita gente no Brasil com a cabeça tão colonizada que não permite a possibilidade de depender de seus próprios sentimentos. Acredito que, quanto mais livres os movimentos do homem brasileiro mais o remelexo corporal do choro transforma o mesmo em um dançarino em suas acentuações. 

    É muito comum encontrar pessoas que, quando jovem, era balizado pela música estrangeira e, hoje, mais livre dessa verruga, admite uma emoção profunda com os processos encontrados na alma do choro. 

    Já quem gosta de forma voluntária, costuma cair numa teorização excêntrica em que só acredita na pureza de determinada essência e, claro, a eleita por ele. 

    Como foi, e tem sido, a sua experiência na formação de grupos de choro? 

    Participei de muitos, entre todos o que mais trouxe diferença, como compositor, foi o Vera Cruz. Porém, como instrumentista, na década de 70, foi o Cinco no Choro. Na verdade, cada grupo tem a sua musicalidade e suas próprias fantasias. Num momento buscamos a virtuosidade pura. Em outros, uma cantiga mais amadurecida, desenvolvida por um elemento fornecido pelo nosso amadurecimento. 

    Além de excelente músico e compositor, você é um dedicado pesquisador. Quando iniciou o seu interesse pela pesquisa e como ela influencia o seu processo criativo? 

    Aproveito essa grande oportunidade para esclarecer que não sou um pesquisador daqueles que seguem o compasso de uma pesquisa científica. Estou mais para um catador de elementos e um contador de determinadas acentuações para tecer determinadas teorias. Gosto destas subdivisões inventadas pela sociedade, mas afirmo que não tenho instrumentos que signifiquem o expressivo conceito de pesquisador. Quem o faz de forma maravilhosa, aqui em casa, é a Aressa Egly Rios da Silveira (filha e realizadora do projeto) que acompanha cada movimento até a sua fadiga, para tecer uma perfeita tese com elementos científicos capazes de expressar aquelas sílabas que só os pesquisadores, como Mário de Andrade, conseguem traduzir. 

    Na verdade, mesmo acentuando algumas características após a nossa investigação, minha e da Celeste Alves da Silveira (produtora e coordenadora geral do projeto), não posso desprezar os sentidos que se aguçaram na minha música. Porém, nós fomos atrás dessa fonte de riqueza em que falamos no Vale dos Tambores, muito mais para assumirmos que a nossa criação tinha essa ancestralidade. 

    Algum novo trabalho em andamento? Fale-nos um pouco sobre ele. 

    Sim, e não é algo ocasional. Estamos trabalhando neste projeto, creio que desde logo após o lançamento do Vale dos Tambores. Acho importante acentuar isso, já que vivemos hoje tão restritos às manifestações de final de semana, quando muito, com a formatação imposta pela gestão corporativa de cultura, que é um verdadeiro desastre para um país.

    Esse sistema que nos foi imposto goela abaixo, se confunde com a mesma forma de enterrar a cultura, seja ela feita por fundações, institutos, sistema “S”, secretarias municipais e estaduais e, por fim, a Lei Rouanet e, agora, o próprio Ministério da Cultura, com a farda de gala vestida pela Ministra Ana de Hollanda. 

    Deixando isso claro, sigo dizendo que estamos buscando neste trabalho outros timbres, aparentemente mais discretos, mas quero testar outras portas que estavam secretas dentro de mim. O projeto se chamará “Tem Muito Arroz Neste Pilão”, logicamente que, a bordo, buscaremos os ventos andradinos para fazer as pessoas esticarem os olhos além da poltrona de um único dia de lançamento. Mas vamos atravessar esse oceano, pois ainda temos um longo pedaço para ganhar o mundo. Neste momento, para a prefeitura da minha cidade de origem, por exemplo, não encontro receptividade ao que artisticamente produzo, portanto, diante de tal indiferença, só nos resta aplicar o conceito do girassol e fazer nosso jardim suspenso buscando a luz em outra forma de financiamento. 

    E para finalizar, Carlos Henrique… Por que o Bandolim? 

    Não vou me alongar tanto aqui. Objetivamente posso lhe dizer que o bandolim faz parte de uma família de outras tentativas de instrumento de cordas. Comecei com o violão, passei aos poucos para o cavaquinho e, mais à frente, com tranqüilidade, o bandolim foi me seduzindo. Foi uma gravidez sem traumas, pois o próprio grupo do qual eu fazia parte, me incentivava a encaixar no meio da turma os sons vestidos pelo bandolim.

    * Ouça a belíssima exposição de músicas do álbum, clicando na Galeria de Arte do  www.pessoabonita.com.br